Blindagem trincada

Imagem: Magali Guimarães
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MANUEL DOMINGOS NETO*

A tentativa de apaziguamento do quartel ajeita e desmantela: pode aliviar tensões momentâneas, mas dá tempo às novas tramas

Em seu retorno à presidência, Lula deixou claro seu interesse em sossegar a caserna e governar sem arroubos. A escolha do Ministro da Defesa atestou sua opção. José Múcio Monteiro disse com todas as letras estar “resolvendo as coisas em absoluto comum acordo com os comandantes das Forças Armadas”. Ignora que houve uma eleição: “Na realidade, eu administro apenas a resultante da vontade de cada comandante”.

Os comandantes, entre outras demandas, querem recursos públicos. José Múcio Monteiro endossa a recomendação da OTAN de investir 2% do PIB em Defesa. Exibindo distanciamento da temática, argumenta que o Brasil tem uma grande fronteira!

A rejeição ao debate sobre a renovação da Política Nacional de Defesa, na qual os comandantes sempre pontificam, é outra demonstração de que Lula não quer contraposições aos desígnios do quartel.

A sugestão de uma Conferência Nacional para ampliar a discussão sobre essa política pública fundamental não foi levada em conta. José Múcio Monteiro desqualifica a crítica acadêmica com jeito de saudoso da ditadura.

O debate poderia mostrar que os investimentos requeridos são inadequados para defender o Brasil neste ambiente de tensões internacionais. Poderia revelar também a falta de lógica, para a Defesa Nacional, da supremacia da Força Terrestre em relação à capacidade aeronaval. Enfim, tudo fica como sempre esteve.

A reação do governo ao vandalismo do dia 8 de janeiro, quando a cadeia de comando foi preservada, em que pese ter falhado na contenção da baderna golpista, já evidenciara a opção de Lula de não mexer com os quartéis.

Em bate-papo virtual, seu ministro da Defesa isentou completamente as corporações. Disse que os militares não teriam deixado “digitais no dia 8” e que a CPI para investigar o vandalismo seria um “movimento midiático” de parlamentares que querem aparecer: “não vamos encontrar responsáveis”. No máximo, seriam responsabilizados pessoas sem liderança, afirmou.

Fatos recentes, entretanto, mostram as dificuldades de blindar as corporações. Muitos brasileiros acompanham indignados as gravações do tenente-coronel Mauro Cid. Nomes vão sendo revelados nos jornais. Impossível prever as revelações que podem surgir.

A atuação golpista dos militares foi prolongada, sistemática e explícita. Mesmo a imprensa conservadora mergulha nas investigações. A Polícia Federal mostra serviço e a Justiça dá demonstrações de que a blindagem está trincada.

Como reagirão os comandantes, em particular o do Exército, diante das revelações? Até onde irá a Corte?

Lula quer apaziguamento, mas a dinâmica dos fatos contraria sua expectativa. As corporações desejam o que Lula não pode dar: anistia antecipada aos seus integrantes investigados e plena liberdade para prosseguimento de sua cruzada obscurantista.

O atendimento às demandas corporativas não basta para apaziguar o militar. No passado, Lula acreditou nisso e terminou preso. Voltou à chefia de Estado sob a espada de Dâmocles. Dilma Rousseff também acreditou e perdeu o cargo.

Muitos afirmam, atenuando a responsabilidade da caserna, que ambos foram vitimados por golpes judiciais, parlamentares e midiáticos. Mas golpes não se efetivam sem amparo militar e policial. O exercício da autoridade sobre a caserna é indispensável à institucionalidade democrática.

A tentativa de apaziguamento do quartel ajeita e desmantela: pode aliviar tensões momentâneas, mas dá tempo às novas tramas. Soldados precisam receber missões claras, desafiadoras, gloriosas. Reconhecê-los como interlocutores políticos é um erro fatal para a democracia. Blindá-los, nestas circunstâncias, é missão inglória e, provavelmente, impossível.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e ex-vice-presidente do CNPq.

A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • O negacionismo ambiental e a inundação de Porto Alegreporto alegre aeroporto alagado 14/05/2024 Por CARLOS ATÍLIO TODESCHINI: Porto Alegre tem o melhor sistema de proteção contra cheias do Brasil. É considerado um “minissistema holandês”. Por que esse sistema falhou em sua função de evitar que a cidade fosse alagada?
  • A mão de OzaJoao_Carlos_Salles 14/05/2024 Por JOÃO CARLOS SALLES: O dever do Estado brasileiro e a universidade contratada
  • A universidade operacionalMarilena Chauí 2 13/05/2024 Por MARILENA CHAUI: A universidade operacional, em termos universitários, é a expressão mais alta do neoliberalismo
  • Pensar após GazaVladimir Safatle 08/05/2024 Por VLADIMIR SAFATLE: Desumanização, trauma e a filosofia como freio de emergência
  • Por que estamos em greve nas Universidades federais?Gatinho 09/05/2024 Por GRAÇA DRUCK & LUIZ FILGUEIRAS: A greve também busca disputar os fundos públicos com o capital financeiro e forçar o governo a se desvencilhar da tutela desse mesmo capital e de grupos políticos de direita
  • Dias perfeitos – o peso do ordináriodias perfeitos 2 07/05/2024 Por ALEX ROSA COSTA: “Dias perfeitos” expõe não as fissuras de pequenas belezas cotidianas, mas a rotina como forma de proteção contra o inesperado, o encontro, o outro, a reflexão
  • Edward W. Said – crítico literário e intelectual públicowalnice 10/05/2024 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Os trabalhos de Edward W. Said alçam-no à posição de um dos mais influentes pensadores das implicações políticas da cultura em nosso tempo
  • Suicídios de policiais em São Paulosombra 9 12/05/2024 Por THIAGO BLOSS DE ARAÚJO: A indiferença de Tarcísio de Freitas com as dezenas de mortes resultantes das operações policiais se amplia para uma indiferença com as mortes dos próprios policiais por suicídio
  • A Universidade funcionalistachave 11/05/2024 Por JEAN PIERRE CHAUVIN: O contrato de orientação entre professores e orientandos não deve(ria) funcionar como se a universidade fosse um balcão de negócios
  • Um ensaio sobre a libertaçãoWolfang leo maar 11/05/2024 Por WOLFGANG LEO MAAR: Prefácio à edição brasileira do livro recém-editado de Herbert Marcuse

AUTORES

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES